terça-feira, 12 de maio de 2009

Agô, o predestinado

De dentro do útero para dentro de uma caixa de papelão, nas ruas de Ribeirão Pires, região do Grande ABC. Depois, para a casa de Cida e, finalmente, para os braços de Daniele.

Ele não é patrocinado por uma fabricante de material esportivo, não faz comerciais de cerveja e não atrai paparazzi, mas sem sombra de dúvida, é um fenômeno capaz até mesmo de superar o humor negro que originou o próprio nome. “Quem o encontrou nos disse que ele estava agonizando, repetia muito isso. Daí, resolvemos colocar o nome nele de Agô”, conta Aline Cristina, técnica veterinária e funcionária do Clube dos Vira-Latas, a Organização Não Governamental (ONG) para a qual foi levado.

Desde a salvação, Agô já demonstrava ter nascido com o rabo longilíneo virado para a lua. Coube à protetora de animais Cláudia São Bernardo, conhecida pela habilidade de sempre cruzar com cães da raça São Bernardo abandonados, topar com o SRD caramelo, acompanhado de duas irmãzinhas, uma delas já sem vida.

Aos recém-iniciados no universo dos cachorros de rua, SRD é a sigla para sem raça definida, termo politicamente correto usado para designar o bom e velho vira-lata.

Logo que chegaram ao Clube, com aproximadamente 20 dias de vida, os dois membros remanescentes da família Agô foram diagnosticados com cinomose, virose que ataca principalmente o sistema nervoso e costuma ser fatal. A maior parte dos animais sobreviventes sofre com sequelas como paralisa nas patas. Após dois dias, apenas ele resistiu, tratado à base de mamadeira e papinha. A única lembrança da enfermidade é uma leve fisgada na pata dianteira da frente, espécie de tique nervoso, quase imperceptível.

Além de refúgio para cerca de 350 cachorros, o Clube dos Vira-Latas é a residência de Cida Lellis, presidente da entidade. Há quatro anos ela trocou a casa onde morava por uma chácara de quase 400 m², em um município na região metropolitana de São Paulo. No local que prefere não divulgar para evitar uma leva de abandonos diante do portão, vive cercada por árvores e conta com seis funcionários para manutenção e um veterinário. Solteira e sem filhos, a professora aposentada optou por se dedicar exclusivamente a cuidar de bichos. Sorte do então novo hóspede, recolhido à cozinha para evitar a contaminação dos demais animais.

No primeiro sábado de maio, dentro de uma bolsinha, Agô embarcou em um Táxi Dog, no colo de Aline, rumo à feira inaugural de animais deficientes promovida pela ONG Sava (Solidariedade à Vida Animal). A organização funciona como uma espécie de central responsável por convocar a rede de parceiros para as feiras e mutirões de castração.

O jovem de dois meses não seguiu sozinho. Teve a companhia de Lúcio, um companheiro marrom claro, vítima de um atropelamento na avenida Jabaquara que lesionou a medula e impede a movimentação das patas traseiras. Nada que uma cadeira de rodas adaptada não resolva.

Dentro do Pet Shop Tancredo Dogs, na Avenida Tancredo Neves, zona sul de São Paulo, as histórias e os latidos se misturam. Sem a pata direita dianteira, amputada após complicações causadas também por um atropelamento, Mel se faz perceber logo na entrada. Com porte semelhante ao de um labrador, ela é a maior entre os SRDs acomodados em duas fileiras de gaiolas com grades brancas e babados cor de rosa. Movimenta-se sem grande dificuldade e deixa os visitantes lhe acariciarem a cabeça, apesar de ficar receosa com crianças. “Ela deve ter sido machucada por alguma”, acredita Eliana Matiussi, madrinha que custeia os gastos com o veterinário e a hospedagem da afilhada.

Também professora aposentada, casada, dois filhos e três netos, Eliana é uma dos milhares de pessoas dedicadas a recolher animais em situação de risco para mantê-los em clínicas até a oportunidade de adoção. São os chamados cuidadores independentes. Graças à Internet, o trabalho deles ficou muito mais fácil. Boa parte integra comunidades virtuais por meio das quais divulga a realização de eventos, faz denúncias de maus-tratos e pede socorro para manutenção de abrigos e acolhimento de animais.

Com a ajuda da rede reuniram cerca de mil pessoas diante do canil do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ), na capital paulista, no final de abril. “O CCZ não faz campanha de adoção, mistura cães sadios com doentes, grandes com pequenos. Os bichos acabam se matando, transmitindo viroses uns para os outros”, diz Arlete Martinez, presidente da Sava, explicando a razão da manifestação.

“As ONGs não podem entrar para fotografar os animais e tentar doá-los, nem retirá-los para levar a feiras. Não conseguimos sequer promover mutirões para banho e tosa. Não há explicação”, complementa Roberta Roperto, voluntária da mesma entidade.


Desde 2008, uma lei estadual impede a eutanásia de animais saudáveis em São Paulo. Com isso, a carrocinha passou a atuar somente em casos de denúncias, como quando algum animal oferece perigo.

Ao lado de um entediado, indiferente e sonolento Agô, uma cadelinha marrom claro chama atenção. De nome Leci, foi encontrada na rua e abandonada em uma clínica veterinária. Foi outra que conseguiu vencer a cinomose, mas perdeu os movimentos das quatro patas. Isso faz com que tenha de permanecer de fralda e ser trocada a cada duas horas para não ficar assada. Arlete confia na acupuntura para fazê-la mexer as patas da frente. Dessa forma, poderia garantir parte da independência com uma cadeira de rodas semelhante a de Lúcio.

Independência que não falta a Pituxo, um rechonchudo SRD branco com manchas pretas sem a pata direita dianteira, fruto de má formação congênita. Mas esse não está disponível para adoção. Não agora. Há nove anos, por indicação de Arlete, Teresa Salvetti o levou para casa quando era apenas um filhote de mês e meio. Na casa da engenheira elétrica, em Santo André, era impossível se sentir deslocado. “Temos a Menina, trípede, a Xuxa, cega, o Roni com problema na coluna e a Doris, com início de convulsões”. Além desses, Teresa cuida de outros três, com apoio do marido, Fowler Braga Filho.

Filho é presidente da Focinhos Gelados, ONG que mantém a campanha Animal Saudável é o Bicho. A iniciativa, em parceria com o Estado, discute zoonose e legislação de proteção aos animais em escolas públicas integrantes do programa Escola da Família. Profissional na ação e no discurso, ele acredita que pedir doações por piedade é a pior forma de conseguir apoio empresarial à causa animal. “Quando eu sento com o empresário, ofereço uma oportunidade de ele fazer um trabalho de responsabilidade social e corporativa”.

As feiras de adoção da Sava acontecem desde 2004, ano de fundação do grupo. Atualmente, as edições são mensais. Para obter a guarda de um animal é preciso ter mais de 21 anos, apresentar RG, CPF, comprovante de residência, responder um questionário e ser ser capaz de amar e oferecer carinho. Parte do custo para manutenção dos bichos é paga por meio da realização de bingos e bazares beneficentes. A grande fatia, contudo, sai do bolso dos protetores.

Nos eventos com animais sem deficiência, a média é de 20 adoções. Dessa vez, três encontraram um novo lugar para morar. Cego, um cão de cerca de oito anos, pelos marrom escuros e cujos olhos foram perfurados na rua, agora se chama Teco e fará companhia para Liliane Medeiros e Renato Kenjiro. “A maioria tinha protetor, menos ele. Fiquei sensibilizada e resolvi levá-lo”, declara Liliane. Será o sexto na casa, além dos 12 que a adestradora mantém na residência da mãe. No primeiro dia, Teco ficou um pouco alheio, deitado perto do portão, mas logo mapeou o quintal e sempre que ouve chamarem seu nome ou estalarem os dedos, chega balançando o rabo.

Mesmo destino teve Pandor, depois Adamastor e atual Sheldon. “Meu marido tinha dificuldade para dizer Adamastor”, explica Natália Rogek, que chegou como voluntária ao Tancredo Dogs e saiu como mãe adotiva. Outra provável vítima do trânsito paulistano, o cachorro de pelos pretos e cerca de dois anos teve de passar por uma cirurgia para retirada da pata dianteira, após uma protetora encontrá-lo com uma fratura mal curada. Enquanto os pontos da cirurgia não cicatrizam, Sheldon tem o privilégio de dormir ao lado de uma gata, sua melhor amiga, na cama da bióloga e do marido. Nada mal para quem ficou quase dois meses em uma clínica.

Antes de todos eles, Agô mostrou a estrela mais uma vez. Daniele Jorge chegou às 14h na feira, motivada pelo desejo da filha de cinco anos de ter um mascote e com indicações de pessoas que anunciam animais na Gazeta do Ipiranga. Ao invés de comprar, resolveu adotar. “É uma atitude mais de coração. Você vê tantos abandonados na rua”, comentou. Foi paixão à primeira vista. Da mesma forma que os outros, Agô mudou de nome e agora reina absoluto como Beethoven, na Vila Carioca, zona sul de São Paulo.

Segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde, há cerca de 20 milhões de cães no Brasil. De acordo com os protetores, os grandes responsáveis pelo abandono são a falta de ação do poder público para promover campanhas de conscientização sobre posse responsável, pouquíssimos programas de castração para controlar a superpopulação e no caso da capital paulista, a precária estrutura do CCZ para absorver animais abandonados.

Há ainda o problema da aquisição de animais da moda por impulso. “Algumas pessoas compram raças de grande porte como pit bull, rottweiler, labrador e largam no meio da rua porque se mudam para apartamento ou porque fica muito caro para cuidar depois que crescem”, aponta Arlete.

Mel, Lúcio e outros 10 cães voltaram para lares provisórios. Quando Agô encontrou um dono, Aline comentou sobre a “tristeza de ver ir embora”. Mas, como todos os outros parceiros, ela espera que a estadia nas ONGs seja apenas um processo de transição. Certo mesmo é que a vida dos bichos seria mais difícil, não fossem as entidades e principalmente, a ação dos defensores independentes. Como definiu Filho, “um inestimável exército de gente que fica no anonimato”.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

De flores e curativos

Foto: Andre Arruda (Samba Photo)

Por Washington Luiz Araújo

Último dia de ano, duas e meia da tarde, sol escaldante lá fora, ar refrigerado numa farmácia do Flamengo, Rio de Janeiro. Estou comprando meus últimos suprimentos para entrar no ano novo sem dor de cabeça, já que não comprei o suficiente para as noites anteriores e minha “cachola” estava pagando por isso.

Ao adquirir meus envelopes de Engov ouço uma voz: “moço, o senhor tem um pedaço de esparadrapo?”. Não. Foi o que respondeu de pronto o balconista. Até processar o diálogo na minha combalida cabeça ressacada, o rapaz que solicitou o pedaço de curativo já estava saindo da farmácia.

Acompanhei seus passos claudicantes e vi que parou atrás de um monte de flores e ali sentou. Comprei uma caixinha de band-aid, por R$ 1,29, tirei dois e levei até o vendedor de flores que sofria com o sapato apertado. Vai saber quanto tempo não usa um calçado novo? Entreguei os curativos e ouço um muito obrigado, além da oferta de flores. Poderia pegar as que eu quisesse.

Encabulado, não querendo dar muito prejuízo, pego um botão de rosa vermelha, mas este traz outro enganchado pelos espinhos. Tento soltá-los, mas ouço o rapaz: “Pode ficar com os dois e feliz ano novo”. Certamente, os dois botões custavam bem mais do que a caixinha de esparadrapo, da qual só subtraí dois curativos e fiquei com o restante.

Saí, com cara de bobo alegre, ostentando as duas rosas, com espinhos e tudo. São estas rosas que ofereço a vocês.

E o ano novo começou.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Entrevista: Renata foi ao Paquistão

Fotos: Renata Castello Branco

A fotógrafa paulistana Renata Castello Branco, 53, filha de um piauiense com uma gaúcha, caminhou durante oito meses pelas ruas da maior comunidade de São Paulo. A câmera digital Cannon foi seu passaporte para ingressar na euforia e na melancolia dos anônimos que compõem as 140 páginas do livro “Heliópolis”.

Por sugestão do Secretário de Educação da Cidade de São Paulo, ela resolveu deixar o estúdio na Vila Mariana, em dezembro de 2007, para registrar a vida presente nos cultos, nas conversas de calçada e nas roupas estendidas no varal.

Também visitou o Paquistão, um lugar onde nem mesmo a união dos moradores tem grande influência. Foi aí que precisou usar a lábia e o poder da imagem.

Com apoio da Fundação Padre Anchieta e da própria Secretária Municipal de Educação, a editora DBA lança na quarta-feira, dia 10 de dezembro, o resultado dessa imersão. A noite de autógrafos de “Heliópolis” acontece às 20h, no Centro Cultural São Paulo.

É uma oportunidade única: por problemas burocráticos, o material não poderá ser vendido. Quem comparecer levará para casa uma edição da obra que será distribuída para escolas da cidade.

Um dia antes do lançamento, Renata recebeu a reportagem de Anonimato S/A para falar sobre o início da carreira, os bastidores do projeto e a interferência da imagem na vida do cidadão comum.

Como surgiu sua paixão pela fotografia?
Renata Castello Branco – Quando eu tinha 17 anos, meu pai, Renato Castello Branco – um publicitário que começou a vida como escritor – se aposentou e resolveu fazer um trabalho com cunho jornalístico sobre Sete Cidades, um parque de formações rochosas no Piauí. Ele me levou junto, porque eu tinha interesse em arqueologia. Comprou uma (câmera) Nikkon e jogou na minha mão, pedindo para eu fotografar as formações e as inscrições rupestres. Eu adorei! Até fui fazer faculdade de História, mas no meio do caminho já sabia que não era isso que eu queria.

E o primeiro emprego?
Renata – Antes da faculdade eu fui trabalhar no estúdio do Chico Albuquerque, o maior de São Paulo na década de 1980. Ele foi o responsável por fazer a transição da ilustração para a imagem na publicidade. No acervo dele eu encontrei coisas incríveis, como propagandas que eram metade ilustração, metade fotografia. Desenhava-se uma escadinha na parede e uma luminária, bem rudimentares, e aí fotografavam uma mulher de forma que parecesse subir os degraus.

A estrutura era boa?
Renata – Cheguei em um período de muito investimento. Para fotografar um fogão, montava-se uma cozinha inteira dentro do estúdio. Era a época da grana, a mídia impressa tinha um valor enorme. Depois, saí para fazer faculdade, mas já começava a pegar uns trabalhinhos. Comecei a trabalhar com publicidade, iluminação e depois com retrato, que eu sempre gostei e aprendi a fazer com seu Chico. Passei a fazer muitos retratos empresariais, corporativos, de campanha política e acabei conhecendo os marqueteiros. Descobri aí o segmento que é meu foco: fotografia para campanha pública. Eu trabalho mostrando a gestão dos governos.

O livro Helíópolis tem um enfoque publicitário?
Renata – Não tem, mas surgiu a partir de um contrato que fechei com a secretaria de educação para falar sobre a gestão de uma forma geral. O secretário, que tem uma visão abrangente, encomendou um livro autoral sobre Heliópolis, porque a comunidade possui um projeto educativo muito interessante. Ele sugeriu que fosse feito dentro de um pacote de coisas que eu estava produzindo, mas com total liberdade.

O que você destaca no processo de elaboração do livro?
Renata – A parte testemunhal foi o que me encantou. Não deixa de ser uma delícia ver o livro pronto, mas o grande barato foi a jornada: entrar nas ruas, andar aleatoriamente por elas, pelos becos, buscando o que tem atrás de um varal, de uma porta entreaberta. Ouvir histórias, tomar cafezinho com as pessoas, ouvir desabafos. Uma relação que só foi possível porque eu tinha uma câmera pendurada no pescoço. A câmera fotográfica foi uma espécie de passaporte para interagir com as pessoas em uma comunidade que tem uma associação muito atuante (UNAS – União de Núcleos, Associações e Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco).

Qual era sua pretensão quando você começou a fotografar?
Renata – Nenhuma. Entrei lá rasa. Inclusive, no começo estava no caminho errado. O primeiro contato que eu tive foi através da UNAS e se eu não tinha nenhuma amarra nem com a prefeitura, nem com o secretário, me sentia atada à entidade. Porque eles estavam me mostrando a fachada institucional. Não que eles falaram o que eu tinha que fazer, mas, naturalmente, mostraram os projetos que desenvolviam. O primeiro passo foi perceber a necessidade de andar aleatoriamente, conversar, conhecer e entender aquele lugar, focando em coisas que iriam contar a história que eu gostaria.

Você encontrou alguma dificuldade para registrar as imagens?
Renata – Sempre havia alguém me acompanhando, você só circula acompanhada. Tem os lugares que a UNAS leva porque sabe que as pessoas vão gostar e onde o acesso já está negociado. Existe uma realidade paralela, não há um dia em que se ande por lá e não se veja o tráfico acontecendo ao lado. É uma coisa consentida. E eu queria ir nesse lugar aqui (aponta a imagem de um espaço chamado Paquistão, onde há a inscrição: “como pode um soldado pregar a paz, se foi treinado para a guerra”), só que a UNAS não tem acesso. Quando me dei conta, estava negociando com traficante para conseguir entrar. É o lugar mais barra pesada da comunidade, onde a influência da UNAS não existe. Recebi telefonemas em que ouvi coisas como “nós vamos te acompanhar, mas você vai fotografar as crianças do hip hop. Você não quer ir embora sem sua câmera, né?”.

Como os moradores a recebiam?
Renata –
Com uma exceção, não houve resistência. Só encontrei problema quando comecei a fotografar umas casas que estavam sendo demolidas e tinha uma encrenca qualquer com a prefeitura, algo ligado à desapropriação, não sei bem. E aí ouvi umas coisas ruins, algo como “te meto uma bala na cabeça”. Mas, 90% do tempo fomos super bem recebidos. Tem também essa coisa da câmera digital que você fotografa e a pessoa compartilha na hora. Muitas vezes eu me colocava no lugar dos moradores e pensava que eu não gostaria de ser fotografada em uma casa de palafita, numa condição muito difícil, mas as pessoas eram receptivas.

Houve algum outro momento de tensão?
Renata –
Em uma oportunidade, no Paquistão, estávamos numa ‘fusqueta’ lá da prefeitura, quase uma Brasília. O menino que guiava era um garoto de boné. Meu assistente também estava de boné. Mesma coisa um outro rapaz da rádio comunitária que nos acompanhava. E eu e minha coordenadora sentadas no banco de trás. Acho que os policiais pensaram que era um seqüestro e chegaram apontando armas para a cabeça deles. Foi complicado explicar que eu e ela não éramos vítimas.

O que a surpreendeu?
Renata – Uma das coisas que mais chamou minha atenção foi uma história que o Gil, fotógrafo da comunidade, contou. Ele nos explicou que uma região colada à essa do Paquistão sofria dos mesmos problemas e não era acessível. Até o tráfico entrar e moralizar. Não rola mais briga, não se vende droga para os menores de lá de dentro, não tem tiro à noite. Depois que o tráfico entrou e estabeleceu uma porção de regras, entra até caminhão das Casas Bahia, que não chegava. O tráfico faz o papel que o Estado deveria fazer.
Você tem filhos? Conversou com eles sobre a rotina das fotos para o livro?
Renata –
Sim, tenho dois. Minha filha mora no Rio de Janeiro, então conversava mais com meu filho de 19 anos, que mora comigo. Eu contava meu dia-a-dia para ele, mas não é diferente do que fiz a vida inteira. Sempre procurei mostrar um lado que não é o que ele vive. Que a vida não é só Itaim e Nossa Senhora das Graças. Quando ainda era pequeno, vimos juntos o documentário do ônibus 174 e falarmos sobre absurdos como aqueles mauricinhos que botaram fogo no índio, em Brasília. A rotina não mudou por ter esse trabalho. Eu sempre me preocupei em conversar com eles sobre essas questões, não foi diferente nessa ocasião.

Como sua atividade pode interferir na vida das pessoas?
Renata – Eu acho que o fato da prefeitura escolher Heliópolis para fazer esse trabalho é um reconhecimento de que se trata de uma comunidade importante. A maneira como a comunidade está representada no livro é legal para a auto-estima, mesmo sendo impossível não mostrar as dificuldades. Mas, estão também representadas a força, o vigor, a criatividade, a alegria. E isso só há de melhorar a auto-estima. Não que seja ruim a auto-estima deles, acho que eles estão bem. Como trabalho com governos de Estado, prefeituras do Brasil, já estive em outras comunidades. Há três anos faço a Baixada Fluminense, a região da Guarapiranga, em São Paulo, então, tenho parâmetros para comparar e dizer que Heliópolis é a mais organizada.

Você manteve laços de amizade com as pessoas?
Renata –
Eu não vi mais as pessoas com quem convivi, verei novamente amanhã (dia 10 de dezembro, data de lançamento do livro). O Régis, da Rádio Heliópolis, estará lá e virá um ônibus da comunidade. Lembro de algumas pessoas com muita admiração, mas estabelecer laços de amizade é difícil. Eu estou aqui e eles lá. Mas, com certeza, se precisarem de alguma coisa sabem que podem contar comigo. Isso eu acho que a gente pode chamar de laço de amizade.

Qual a visão que a obra apresenta sobre Heliópolis?
Renata – A síntese para mim é que a comunidade, pela condição de vida das pessoas, tem um tanto de dor, mas muito de alegria e de criatividade. Essa alegria passa de dentro das casas para as ruas, coloridas, grafitadas. Você anda por lá e sempre há alguém ouvindo música alto, as pessoas conversam muito, brincam. É uma comunidade que tem a polaridade muito forte. A dor e a alegria são sentimentos que convivem paralelamente o tempo todo. Essa foi a realidade que eu vi.

Serviço
Heliópolis”
Editora: DBA (Dórea Books and Art)
Fotos: Renata Castello Branco
Projeto gráfico: Sylvain Barré
140 páginas
Lançamento: 10 de dezembro, quarta-feira, a partir das 20h, no Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1000, Paraíso/SP).